quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Acerca de mim

entre a Vida e a Morte, apenas o Tempo, senhor das rédeas do Destino, conhece as rotas da Viagem

Nasci na Rua da Cova, naquela baixa e tímida casa de piso térreo, que se anicha ao canto do patamar. Não há, ainda agora, naquela ribatejana e industrial vila de Alcanena, mais poético recanto. Perco-me já um pouco nas voltas do tempo. Sei, ainda sim, que residimos quase sempre nesse romântico casulo, que então me parecia um casarão, até ao início da Viagem, que me havia de resgatar àquele ninho e àquela rua - com a casa alpendrada da ti’Ludovina por atalaia - e lançar nos braços do sonho, das utopias e das escarpas da vida.
Recordo a minha rua e a minha casa, nos poemas ‘Rua da Memória’ e ‘Tempo Longe’ e sei que ainda lá morava quando, aos doze anos, iniciei a aventura do saber, na vizinha Torres Novas. O meu avô materno, António Coutinho, após uma incursão pelo mundo do pequeno comércio, viria a tornar-se mestre em colchoaria e albardaria - profissão que lhe restou na alcunha de Albardeiro, de que nunca mais se libertou - enquanto a minha avó Antónia se ocupava no ensino das artes da costura às jovens da vila. Foram os únicos avós que verdadeiramente conheci. Dos três filhos do casal, Ilda, a minha mãe, casada cedo, quedou-se no recato de uma existência doméstica, resignada, marcada por tédios e desalentos.
Por algum tempo, após a viuvez de minha tia Maria que, com o marido, geria uma modesta padaria no centro da vila, os meus pais tomaram as rédeas do negócio, naquele período do pós-guerra, das candongas e das senhas de racionamento. Durou pouco a experiência. O meu pai, Lúcio Vieira, de seu nome, não era homem de prisões. Aquele quotidiano espartilho, entre as quatro paredes do forno e da sala da amassadeira, não era para aquele serrano, nascido para as bandas de Alvados, em terras de Porto de Mós. O homem sonhava com o mundo, os caminhos, os espaços e as paisagens. Queria andar por aí, por longes terras, num peregrinar de deslumbre e descoberta, que tempos antes havia ensaiado. Não tardou que a padaria se tornasse coisa do passado e o determinado aventureiro retomasse o apaixonado percurso de desbravador de estradas e fronteiras, geradoras de estórias e imagens, que, trazidas de longe, me enchiam de sonhos os serões e ainda agora me marcam a existência. “Uma tarde, em Veneza…”
Nasci no povo e do povo. Aqueles primeiros e decisivos dezoito anos, na minha Alcanena natal, foram, sei-o hoje, muito mais do que uma vida. Mergulho as raízes, desde o início, nos alcatruzes dos dias, nos sonhos dos homens e nos socalcos desta orgia de existir. Guardo, desse tempo, a ânsia de cavalgar impulsos, a alma da cigarra, que por vezes segrega a formiga, a vontade de partir em eterna aventura pelos mundos, que cada vez se tornam mais remotos e guardo, desde então, um gritante desprezo pelos ouros e lantejoulas da sociedade.
Era o embrião do incorrigível paladino e sonhador que, pequeno infante, pela mão do avô se intrusava na tasca do Facão e escutava, surpreso, os desalentos dos operários, a luta diária pelo pão, os reveses e frustrações, as doenças dos filhos, as lágrimas das esposas e o cansaço precoce dos braços e do sangue.
Sou assim. Da infância retenho a plenitude dos mágicos momentos, a paixão pela terra e, sobretudo, pelo mar, “de quem cedo fui amante”. Da infância conservo as palavras urgentes que me vestem os poemas, os gritos de revolta e os sangues sacrificados, de tantos irmãos que apenas clamaram vida. Da infância desperto as prédicas, avisadas e sábias, do avô António, os mundos por descobrir, que se derramavam dos olhos do meu pai e as ferramentas forjadas pelos malhos da esperança, que haviam de permitir o cerne e a seiva e a alma e os anseios, deste aprendiz de alquimista, mal refeito do acto de ter nascido, que tanto quis amar e tão pouco amou.

António Lúcio Vieira

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