quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Herança

vem-me das frestas do tempo
suave e quente
a voz máscula e mágica de meu pai

sons multicores
dum cigano errar por tantos mundos
nos braços de teimosa vadiagem

quantos ventos me trouxeram este pólen
que o domador de estradas me legou
quanto sonho nascido no meu quarto
quantas viagens antes de partir

‘uma noite, em Veneza…’

naveguei às paragens encantadas
nos encantados olhos de meu pai
fui na sua voz a longes terras
lugares assim remotos como estrelas
e era sempre o mistério
e aquele odor das cidades e das gentes
nas mágicas palavras
que esculpia nos meus olhos

aprendi
na sua voz sedutora
a viagem desde então inevitável

ventos passados datas e vidas
e outras dores
tudo é agora exactamente igual
aos retratos que outrora me esboçou

uma tarde
no mais perto do céu dos Pirenéus
olhei a alma da montanha
e disse à alvura dos cumes
‘já vos conhecia há tanto tempo‘

não sei se era o zénite de uma herança
se apenas o prelúdio de um amor
sei apenas que me pareceu ouvir
vinda das encostas solitárias
da cordilheira e da memória
a sua voz trazida pelo vento
a romper-me a alma e a dizer-me
por entre os ecos do tempo
‘eu não te disse…’

António Lúcio Vieira

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