sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Rascunho

Quero dizer-vos que me sinto (ainda) humano.
Quero que saibam que apesar de todos os feitos feitos
entre o primeiro gesto e o infinito
ainda me descubro maravilhado inteiro
em cada dia em que me apetece nascer.
Um rio não corre porque quer. Um rio não corre.
Há-de haver sempre um destino para os rios
e os rios não sabem que não correm.
Como eu, todos os rios viajam pelo tempo. Viajam.
Cansado, sento-me por vezes no portal dos dias
a ver passar os rios. De cima, da montanha vêm nas águas
escolhos, troncos de abetos e farrapos de pastos e pastores
que o vento faz voltar cedo ao redil.
Sento-me e sinto-me humano. Do rio chegam palavras
para o meu silêncio. Ouço.
Falam-me os pastores e bendigo este nascer por entre a vida.
O meu pai trazia-me retratos de longe. De outros rios em viagem
e havia neles pastores a enfrentar os ventos. Nem a minha mãe sabia
os mistérios para lá da porta e já eu era maravilhado por nascer.
Senti sempre perversa necessidade de a mim próprio provocar desafios.
Para descobrir as engrenagens da magia das palavras.
Para saber porque viajam os rios sem naufragar.
Porque correm os pastores quando sopra o vento.
Porque há mais facas que arados.
Quero dizer-vos que apesar de todos os feitos,
de tantas memórias e silêncios
até de acreditar na minha humanidade,
ainda soletro cartas de amor para ninguém,
ainda canto à terra as memórias e vertigens.
Ainda sou a aurora e sou crepúsculo dos meus sonhos. Dos meus prantos.
Quero dizer-vos:
Ainda me falta a derradeira centelha que há-de fazer de mim um dourado fruto.
Maduro e prenhe de sementes. Humano.

António Lúcio Vieira

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